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Por certo, o meu lugar não é estar aqui, neste lugar onde me sento.

Aqueles que aqui se arrastam ou que por aqui se encontram sabem bem o lugar em que se perderam. Todos estão semi-conscientes, ainda que por breves momentos, do quanto estão perdidos. Talvez haja em cada um, uma breve, leve esperança de que nalgum dia se voltarão a encontrar.

Confrontado com o estado de auto-imersão em que cada um se encontra é difícil permanecer intocado, indiferente.

Cada qual com o seu nível de neurótica passagem por cada cadeira, lugar ou sala. É na sala de fumo que nos aproximamos ou distanciamos.

A vista possível sobre a cidade faz-nos lembrar que estamos fechados. Para alguns é o paraíso. Para outros o paraíso está há muito perdido. A principal qualidade do ar que se respira na sala de fumo é a solidariedade.

Partilha-se o fumo em primeiro lugar. Partilham-se os cigarros, os filtros e as mortalhas com ou sem tabaco a acompanhar. Partilham-se as loucuras em que se perderam.

No início era tudo desconhecido. Mas era fácil. Sempre foi fácil. Foi sempre só uma questão de tempo para aprender a respeitar cada um e aprender a com cada um melhor partilhar o que havia. As coisas, mas principalmente a disponibilidade para receber.

Não falta aqui quase nada a ninguém. Falta por isso quase tudo. Falta a vida que se teve lá fora. Falta o resto da vida deixar de ser como um sono não dormido, vivido acordado.

E eu? O que faço eu aqui? Aprendo em primeiro lugar. Aprendo a medir a dimensão do meu problema. Dos meus vários e muitos problemas. Ainda não foram dormir. Ainda me deixam acordado à noite. Não sei sequer se os quero adormecer dentro de mim. Acho que não o quero.

Já partilhamos lágrimas, atravéz das lágrimas dos outros. Já rimos com o riso dos outros. Trocámos sorrisos e suspiros. Trocámos uns de camisa outros as músicas. Algumas histórias e sempre cumplicidade. Talvez não seja tanto solidariedade mas sim cumplicidade o que aqui mais se troca.

E eu neste lugar, sabendo que em breve daqui sairei, sinto-me cada vez mais como um impostor.

Não vale de nada comparar dores. Nem experiências de desilusão com a vida. Aqui há lugar para as frustrações que se trouxe de fora mais as frustrações de cá estar a olhar para os membros mutilados.

Mesmo com tensões geradas pela convivência forçada, todos são cúmplices. O que uns são permite aos outros não ter de o ser.

Cada um fechado no seu casulo, cada um abrindo sem problemas a porta ou antes entre-abrindo, que aqui as portas nunca se abrem completamente.

Por entre as portas mal fechadas escapam sinais da vida exterior que cada um viveu até aqui vir parar.

Os dias são longos e começam sempre cedo. A vida é regrada pela hora das refeições assim como pelos simulacros de actividades programadas diariamente. As actividades funcionam quase todas apenas pela manhã. Porque cada um pode ser chamado para a visita ou conversa com o médico, acabam as actividades por ter um certo carácter de simulacro.

E o que acontece a cada um depois dessa visita ou conversa? Como de lá saem e como esse estado vai determinar o próximo resto de dia e os próximos dias?

E eu no meio de todos, como altero eu os seus dias? Se ao menos eu o fizesse da mesma forma como eles o fizeram a mim...

Há um sentimento de privilégio não merecido. Acabo por receber muito mais do que posso dar.

Agradeço-lhes muito o que me permitiram aprender.

Ainda não estou bem, sei-o. Falta-me ainda aceitar tudo como o que me coube até este momento. Para a frente, alguns planos, algumas certezas, não certas, e um dia de cada vez.

Tal como todos os dias o Sol se ergue e se despede, também eu, também tu e eu, também nós nos erguemos e nos despedimos até ao próximo dia.

Afinal o meu Sol é também teu e nosso; sem que ninguém retire o Sol a alguém.

O contentamento que daí advém depende apenas de mantermos o coração aberto.

E o amanhã como será? O que virá para cada um de nós os que aqui vivemos por uma tão frágil fase das nossas vidas?

Schwach

A leveza com que te sustentas

contrasta com a dureza do teu ser

No teu livro, as palavras

lembrarão para sempre verdes paraísos.

O salto entre o leve e o duro

é como a viagem

entre o meu inferno e o meu paraíso.

Meinen Schutzengel bist du

Ohne dich, bin ich Schutzlos.

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