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Há professores de quem sempre nos lembramos. O Zé é um deles. Era o Zé ainda só o Zé Mourinho, um puto de vinte e poucos anos, a acabar o seu curso no então ISEF, a frequentar o seu ano de estágio obrigatório quando foi colocado na Escola Secundária da Bela Vista onde entre outras turmas tinha um oitavo ano onde eu era um dos alunos.

Para alguns o Zé era já quase uma estrela apenas por ser filho do Velho Mourinho, antiga glória do Vitória, mas para mim que até sou do Sporting, era apenas mais um professor de Educação Física, aquela disciplina onde em 80% dos casos se joga futebol. Por acaso não foi assim nesse ano em que muitas vezes jogámos voleibol, o meu desporto de eleição, o que me valeu alguns elogios da parte do Zé - "Tu percebes mesmo disto!"- enfim dava uns toques, digo eu.

O mito do Mourinho, enquanto semi-estrela, tornava-se a cada semana maior graças às aventuras que um colega de turma nos contava. Após as aulas, o  Zé dava várias vezes boleia a este meu colega. Quer isto dizer, depois das aulas iam os dois como bons amigos acabar o dia a jogar bilhar, matraquilhos, e o que mais se fazia nessa altura, meados dos anos 80, em Setúbal. O meu colega de turma era já um pouco mais velhote (18?) em relação aos outros, tendo o professor não mais de cinco anos de diferença. A sua relação de cumplicidade era por nós considerada normal, embora permanecesse um pouco como um semi-segredo. "Cool! O prof. é teu amigo e é um bacano." O meu colega, um dos meus melhores amigos na escola, na altura, não se poupava a contar as histórias e as aventuras do dia anterior e nós deliciávamo-nos com todas elas. Na altura o Zé treinava uma equipa das camadas jovens no Comécio e Indústria e o meu amigo tinha lugar no banco de suplentes como treinador adjunto. O Zé era um puto do Montalvão, um beto, o que proporcionava ao meu amigo, crescido no Miradouro, acesso a certas brincadeiras de gente jovem e melhor na vida e o seu orgulho era  nosso orgulho. O nosso professor era mesmo um bacano.

Para o resto da turma era o stôr mas, para o meu amigo era o Zé. Para nós era-"Stôr, podemos hoje jogar à bola?" -para o meu amigo era mais coisa do género - "ZÉ, hoje a malta joga lá fora, ok?" - e, sabendo o que sabiamos, não se tratava de uma falta de respeito. Era apenas a continuação de uma amizade onde, naquela situação concreta, um era o professor e o outro era seu aluno, sem nunca deixar de ser o seu amigo. Cabia-nos a nós, seus alunos e seus colegas, respeitar a relação de amizade e continuar a respeitar o professor como tal. Que o diga uma colega, que era um pouco mais atrevida, e que um dia, se virou para o professor e disse: "Zé, podemos hoje jogar basket?" o que o Zé interrompeu de imediato - "ZÉ?" -"Desculpe professor, podemos hoje jogar basket?". Ficou bem claro para todos que havia que saber separar as águas.

Para mais, o Zé, ainda rapaz novo, era bom jogador e o meu amigo, que tinha o Platini como herói, era um mágico da revienga. Chegou a altura do campeonato inter-turmas na escola e a bomba chegou certa manhã nas primeiras aulas do dia. -"O Zé vai jogar pela nossa turma" - "o quê? Qual Zé? O Mourinho? Tás a brincar!" - "Não estou nada, deixa comigo que vais ver, o Zé vem jogar na nossa turma." - Na verdade não era uma tarefa assim tão fácil de conseguir mas, o meu amigo era do Miradouro! Quer isso dizer: tinha manhas! Engendrou um plano e toca de o pôr em prática. Primeiro foi indagar na associação de estudantes se nos era permitido inscrever um professor. Ao que parece, ou os regulamentos eram omissos quanto a inscrever um prof ou fazia já parte dos regulamentos. Pelo sim pelo não, o meu amigo tratou de pôr a questão em relação ao nosso professor de trabalhos oficinais, que até era vice-presidente do C.D. e que, olhando para ele, ninguém antevia como um grande jogador de futebol, muito pelo contrário. Talvez por temer que ao anunciar na A.E. que queríamos inscrever o Mourinho na nossa equipa, o regulamento já nos pudesse ser desfavorável, o meu amigo engendrou este plano. O que é certo é que lá inscrevemos o Zé na equipa das inter-turmas. O torneio correu-nos tão bem que a nossa turma de oitavo ano chegou à final do torneio, isto contra duas turmas de desporto, uma do 9º e a outra do 11º. Foi uma final muito sui generis, sendo que a razão ao certo para uma final a três num todos contra todos já se me passou da memória. Na volta foi por medo do Mourinho! O que é certo é que lá fomos à final, com jogos épicos pelo meio de goleadas de quatorze ou quinze a zero. A nossa equipa era quase pró. Até equipamentos tinhamos, com camisolas à boavista e calções brancos, organizados por um outro colega, filho dos donos da Pigalle, loja de moda, na baixa, e que pertenciam à equipa patrocinada pela sua loja, num qualquer campeonato de futebol amador da cidade. Fizemos um brilharete! Os putos do oitavo ano tinham chegado à final do Inter-turmas. Perdemos. Exactamente na semana das finais, o Zé tinha os seus exames de final de curso no ISEF. Num dos jogos nem esteve presente e no outro acho que jogou na baliza, com receio de se magoar. Pela frente tinhamos alguns atletas de alta competição, jogadores do vitória, alguns das selecções. Anteviam-se jogos duros nas finais. Pensando bem, exactamente pelo facto de o Zé não ter podido jogar conosco nas finais é que esta história tomou contornos de uma epopeia. Nasceu a lenda de uma turma do oitavo que quase foi campeã contra as turmas de desporto da Bela Vista, no campeonato Inter-turmas. O stôr era mesmo um bacano. Jogava conosco à bola, deixava um dos nossos chamá-lo por Zé e nunca perdeu o nosso respeito, enquanto professor.

 Acho que este episódio me ensinou algo para a vida. Há que saber distinguir a pessoa da função que desempenha. É como duas peles que cada um de nós veste. A de profissional e a de cidadão, ou noutros contextos, a de amigo e a de pai.

 Para mais, eu só pretendia aqui escrever que o José Mourinho merecia ter recebido o prémio de treinador do século. Se o CR7 o ganhou como jogador, pelo seu desempenho nos últimos vinte anos, assim adiantou a organização, então, por maioria de razões, o Mourinho merecia muito mais do que o Guardiola ter recebido tal distinção. Para mim não mudou nada. O Zé é o maior!

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